"Publicado no O Estado de S.Paulo em 06/Maio/2003 "
João Carlos de Araújo, garimpeiro, de Goiás. Vindo de Cristalina, no vigor da mocidade, para São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, em busca de fazer a vida no garimpo do cristal. "Fazer lasca", como diziam, que era tirar proveito das sobras, ou lascas, que foram deixadas de lado pelos primeiros garimpos da região, em 1912. Vida sofrida a desses garimpeiros, onde o homem saía para o garimpo e ficava fora por 15, 20 dias. Para comer, levava farinha com açúcar. Dormindo ao relento, se o tempo estivesse bom, e debaixo de cobertura de palha, no tempo da chuva.
Quando terminavam os mantimentos voltava para São Jorge, trazendo o material recolhido no lombo do cavalo ou no lombo das costas mesmo. Muitas vezes o material recolhido não dava nem para pagar as despesas.
Da vila de São Jorge, onde se juntaram uns 100 garimpeiros, até a cidade de Alto Paraíso de Goiás, distante 30 km, pouco mais desenvolvida, ia-se de tudo, carro de boi, cavalo, ou a pé. Pois ônibus não tinha ali. Para Seu João Carlos, era muito ruim.
Aí veio o turismo. Os primeiros estrangeiros, que já tinham uma documentação sobre a região. Depois o Ibama, em 1986, começou a fazer um trabalho com a comunidade composta pelos garimpeiros. São Jorge foi um exemplo, porque na época foi difícil de acreditar que um garimpeiro pudesse ser um conservador da natureza. Foi uma mudança rápida, servindo de referência para as outras cidades da região que não acreditavam que isto seria possível. João e os outros garimpeiros foram trabalhar na demarcação dos limites do parque, dividindo as áreas e fazendo as cercas. O parque, criado em 1960 por Juscelino Kubitschek, não tinha uma portaria.
O fluxo turístico aumentava, especialmente nos feriados. O pessoal descia com seus carros para a beira do rio, sem controle, e deixava todo o lixo que trazia. Cortavam madeiras, faziam fogueira, depredavam, poluíam.Então em 1988 o parque foi fechado à visitação. Os visitantes continuavam a chegar a São Jorge, buscando uma maneira de lá entrar. Em 1991 surgiu uma idéia do diretor do parque, Dr. Adílio, de formar uma associação de guias com a comunidade, a ACVCV, Associação de Condutores de Visitantes da Chapada dos Veadeiros. Poucas pessoas acreditaram nessa idéia. Foi reunido um grupo de São Jorge, e algumas pessoas de Alto Paraíso. Contratou-se um educador de São Paulo, o Ismael Nobre, para dar orientações sobre ecoturismo e preservação.
Daí em diante as coisas começaram a dar certo. A confusão inicial foi arrumada. As quase 1800 pessoas que num feriado chegavam a entrar em um dia no parque, hoje não podem passar de 300. A falta de limite de pessoas, a desorientação dos guias, que chegavam a levar 20 pessoas cada um, são coisas do passado. Hoje carros não entram, turistas só acompanhados de guia, um guia não leva mais do que 10 pessoas, o parque tem limite de capacidade, só entram 300 pessoas por dia. A ampliação deste limite é estudada, mas só para 500.
Entrementes Seu João também foi mudando de vida e de posição. De garimpeiro, construtor de cercas, a condutor de visitantes. Freqüentando os vários cursos que foram levados a São Jorge, da Cruz Vermelha, da RTI (Rescue Training Institute), da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, Seu João foi se diplomando.
Passou de guia a um dos responsáveis pela formação dos guias. Hoje, é ele quem dá o curso de resgate aquático e coordena o grupo de busca e salvamento.
Com sua mulher, foi arrumando a casa simples onde morava, adaptando-a para receber turistas. Atualmente Seu João tem 8 aptos, todos com banheiro privativo. E faz o que mais gosta, que é levar seus hóspedes para as trilhas. Se a vida da comunidade melhorou? Diz Seu João " No começo quase ninguém deu valor, as pessoas achavam que isso não ia resolver nada, que não ia prá frente, que era uma bobagem nós ficarmos tentando fazer esse trabalho de ecoturismo, de trabalhar com visitação e preservação. Olhando agora, a vida de todas as pessoas aqui melhorou 100% e, foi uma mudança muito rápida.
Hoje todos têm uma vida mais tranqüila, trabalhamos por conta própria e naquele tempo trabalhávamos feito escravo. Às vezes, quando não podíamos trabalhar no garimpo, nós trabalhávamos nessas fazendas, muitas vezes passando fome e não ganhávamos quase nada. Agora meu objetivo é transformar minha hospedaria numa pousada três estrelas ".
Ele só se esqueceu de dizer que em São Jorge a iluminação das ruas, de terra, ficam apagadas por desejo dos moradores. Eles, influenciados pelos turistas, ainda preferem contemplar sem ofuscamento o céu mil estrelas que a Chapada dos Veadeiros teima em mostrar. Seu João é um dos inúmeros Joãos deste país em busca de uma nova oportunidade. Por obra da natureza e do homem, Seu João reinventou sua vida na sua própria região natal.
Tivesse ele vindo a uma grande cidade, provavelmente não seria mais Seu João. Provavelmente seria tão somente um João.
Edgar Werblowsky é diretor de inovação, relacionamento e ações socioambientais da agência FreeWay Adventures